Quando a câmara de itapeva precisa escolher entre o interesse público e o clã político
Substitutivo ao PL 94/2025 e Projeto de Lei 92/2025 propõem endurecimento nas regras de contratação de parentes e autoridades no serviço público municipal
Nada é mais revelador sobre os bastidores de um Poder Legislativo do que um projeto de lei que mexe com a base fisiológica do poder. E nesta quinta-feira, a Câmara Municipal de Itapeva será desafiada a responder uma pergunta que tem ecoado pelas ruas da cidade, com mais intensidade a cada escândalo abafado e a cada nomeação duvidosa: a quem serve o poder público? Ao povo ou aos parentes dos poderosos?
A pauta de votação inclui dois projetos que, se aprovados sem mutilações, representariam o mais duro golpe contra a velha prática do nepotismo e contra o uso indevido da máquina municipal para manter feudos familiares dentro da administração. De um lado, o Projeto de Lei nº 92/2025, da vereadora Áurea Rosa, mira diretamente as nomeações de parentes de vereadores e agentes do Executivo para cargos comissionados e postos estratégicos da Prefeitura, como secretarias e procuradorias. Do outro, o Substitutivo ao PL 94/2025, assinado pelo vereador Ronaldo Coquinho, vai além: proíbe não só nomeações, mas também contratações por meio de licitações ou contratos administrativos firmados com familiares de vereadores, prefeitos, vices, ocupantes de cargos de confiança e servidores em geral. A vedação se estende até seis meses após o fim do vínculo com o poder público. Traduzindo: fecha-se a torneira do favorecimento disfarçado de prestação de serviço.
Não se trata de propostas simbólicas ou declarações de intenções. Trata-se de um ataque frontal ao modus operandi de grande parte dos microfeudos políticos espalhados pelos gabinetes e repartições de Itapeva. O que está em jogo não é a assinatura de um papel, mas o rompimento com a cultura da “boquinha”, a extirpação do velho método de premiar aliados com cargos ou contratos, muitas vezes em nome de laranjas, outras vezes com o próprio sobrenome ostentado com orgulho nos corredores da Prefeitura. É o fim da promiscuidade entre o público e o privado, entre o interesse da população e os caprichos das famílias que transformaram o serviço público em extensão de suas residências.
O Substitutivo ao PL 94 é, sem sombra de dúvida, o mais ousado. Inspirado em norma semelhante aprovada no município mineiro de Francisco de Sá e já chancelada pelo Supremo Tribunal Federal (no julgamento de repercussão geral RE 910552 — Tema 1001), a proposta sustenta-se em jurisprudência sólida e no princípio da moralidade administrativa. O Supremo foi claro: é constitucional lei municipal que proíba contratações e licitações envolvendo agentes públicos e seus parentes até o terceiro grau. O projeto de Itapeva vai além: estende essa proteção até o quarto grau, incluindo também relações por afinidade e adoção.
Essa ampliação é fundamental. Nos bastidores da política municipal, é exatamente no quarto grau que os arranjos se sofisticam. Quando não é o irmão, é o cunhado. Quando não é o sobrinho, é o genro. E quando não é nenhum deles, é a empresa do primo que atende à chamada pública, sem concorrência de verdade, com o contrato moldado como se fosse alfaiataria administrativa. O texto de Ronaldo Coquinho fecha essas brechas com precisão cirúrgica e a dose certa de coragem — virtude que anda em falta entre os que costumam preferir a “governabilidade” a qualquer princípio.
A proposta de Áurea Rosa, por sua vez, é mais conservadora, mas não menos necessária. Ela combate o nepotismo clássico, o da nomeação direta para cargos de confiança. A vereadora, numa linha que remete ao voto da ministra Cármen Lúcia no Recurso Extraordinário 570.392/RS, sustenta que legislar sobre nepotismo não é prerrogativa exclusiva do chefe do Executivo. O Parlamento tem, sim, o dever de se blindar contra a captura por interesses familiares e de legislar com autonomia. A ministra foi taxativa: impedir nomeações com base em laços de sangue é dar concretude aos princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade. Nem mais, nem menos.
Mas nem tudo são flores nos dois textos. O PL 92/2025 contém uma brecha que precisa ser discutida com lupa: a exclusão dos servidores efetivos das restrições. Em tese, eles podem ser nomeados para cargos comissionados ou funções de confiança, mesmo sendo parentes de quem ocupa cargos de comando. A justificativa? Seriam técnicos de carreira. Mas na prática, sabemos o que ocorre: o cargo comissionado é preenchido pela conveniência política, não pela competência técnica. E um servidor de carreira também pode ser usado como peão num jogo de apadrinhamento. O efeito colateral dessa cláusula pode ser exatamente manter a lógica que se pretende combater.
É aí que o substitutivo de Ronaldo Coquinho ganha vantagem, ao ir além do funcionalismo e atingir também os contratos com pessoas jurídicas e prestadores de serviços. O cerco é completo: não basta impedir que o sobrinho do vereador vire assessor, é preciso também barrar que ele abra um MEI e passe a fornecer serviços de informática, uniformes escolares, aluguel de veículos, equipamentos ou manutenção predial à Prefeitura. Porque, em Itapeva, o nepotismo não é apenas administrativo. Ele é comercial. Está entranhado em contratos emergenciais, dispensas de licitação, ajustes com cooperativas e convênios com empresas de fachada. Se não houver barreira jurídica, o “primo” continuará vencendo licitações sob a conivência de quem deveria fiscalizar — e não participar.
A proposta também resguarda a legalidade ao prever que toda contratação em desacordo com a norma será considerada nula, sujeita à responsabilização por improbidade administrativa. O que está em jogo aqui não é apenas a moralidade subjetiva, mas o cumprimento do §4º do artigo 37 da Constituição Federal. Não por acaso, tanto o PL quanto o substitutivo citam a Lei 8.429/92, que define os atos de improbidade e seus desdobramentos. Quem insiste em contratar parentes com dinheiro público, mesmo diante da proibição expressa, não está apenas cometendo um erro político. Está burlando a lei, e deve responder por isso.
Curioso é perceber que essas propostas não brotaram do Executivo. São frutos do próprio Legislativo. É a Câmara, pelo menos neste momento, que demonstra ter consciência de seu papel institucional. Há uma inversão simbólica: o Executivo, que em tese deveria ser o primeiro a blindar a máquina contra favorecimentos, permanece calado — ou pior, age nos bastidores para evitar que as propostas avancem. Como é comum em cidades interioranas, há quem prefira manter a estrutura como está: funcional, familiar e lucrativa. A nomeação de primos, esposas, filhos e amigos em cargos estratégicos é tratada como moeda de troca, não como vício.
Cabe agora aos vereadores provarem que são representantes do povo — e não dos próprios sobrenomes. A votação desta quinta-feira é histórica não porque é inédita, mas porque é reveladora. Ela vai expor quem está ao lado da impessoalidade e quem prefere o compadrio. Vai mostrar quem quer uma cidade governada por princípios ou por padrinhos. Vai dividir os que servem à coletividade e os que servem à própria família.
Não se pode aceitar que uma cidade como Itapeva, com mais de 100 mil habitantes, ainda viva sob a lógica da Casa Grande. O poder público não é uma extensão da cozinha da família política. Não é um quintal a ser loteado entre agregados. É uma estrutura institucional que deve responder, com seriedade, à população. E isso exige ruptura com práticas arcaicas, com a velha política dos favores e dos conchavos. Para isso serve a lei. E para isso serve o voto — inclusive o voto de cada vereador nesta sessão.
Há quem diga que o nepotismo está com os dias contados. Que a vigilância da sociedade e a atuação dos órgãos de controle vêm estreitando o espaço para o velho fisiologismo. Mas basta olhar os arredores para perceber que o sistema ainda respira. E respira porque há quem o alimente. Porque há quem veja no cargo público uma herança. Porque há quem trate o orçamento municipal como herança de família. É contra esse modelo que os projetos em votação se insurgem.
Não se trata, portanto, de mera discussão legislativa. Trata-se de uma escolha moral. E a Câmara de Itapeva está prestes a mostrar se é capaz de fazer essa escolha. Os nomes de quem vota contra serão lembrados. Os que se abstiverem serão cobrados. E os que se posicionarem a favor poderão dizer, com orgulho, que ajudaram a escrever uma nova página na história política da cidade.
O combate ao nepotismo não é bandeira ideológica. É exigência civilizatória. Num tempo em que o Brasil precisa reafirmar a ética como norte e o mérito como critério, não há espaço para vacilos. Ou se barra a porta de entrada dos parentes, ou se admite a falência moral do sistema. E, como já ensinava Ulysses Guimarães, "quem tem medo da moralidade não pode querer a democracia".
Aos vereadores de Itapeva, resta agora decidir de que lado querem ficar: o lado da moralidade ou o lado dos favorecimentos. O lado da Constituição ou o lado dos clãs. O lado da cidade ou o lado da parentela. Porque quem se cala diante do nepotismo consente com o retrocesso. E quem vota contra o combate ao privilégio, consagra o privilégio como norma.
A quinta-feira será um divisor de águas. E a história não costuma ser generosa com quem foge da responsabilidade.
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