Telegram, fake news e a Justiça Eleitoral: bloquear para não resolver
Com intuito de evitar a disseminação de notícias falsas e
combater as fake news nas últimas eleições, em agosto de 2019, o
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) lançou o Programa de Enfrentamento à
Desinformação, que contou com a colaboração de inúmeras instituições públicas e
privadas, dentre as quais a Câmara dos Deputados, o Senado Federal e principais
plataformas de mídias sociais e de serviços de mensagens, como Google,
Facebook, Instagram e WhatsApp.
Os resultados obtidos o tornaram um dos principais pilares
de combate às fake news nas eleições de 2020. Assim, em agosto de
2021, o TSE decidiu dar continuidade ao projeto, editando a Portaria nº 510,
que instituiu o Enfrentamento à Desinformação em caráter permanente.
Se os desafios para enfrentar as fake news são
imensos para as mídias sociais envolvidas com o programa, a situação piora em
demasia caso outras plataformas, também muito populares e bastante utilizadas
pelos brasileiros, não participem dos esforços conjugados. Esse é o grande
desafio enfrentado atualmente no país, por conta da plataforma mantida pelo
Telegram.
Diferentemente de outras redes sociais, o Telegram nunca fez
parte do Programa de Enfrentamento à Desinformação criado pela Justiça Eleitoral
brasileira. Ao contrário: apesar de possuir uma expressiva rede de usuários em
território nacional, a plataforma ainda não possui representação jurídica no
Brasil.
Em dezembro de 2021, com objetivo de discutir possíveis
formas de cooperação no combate à desinformação, o presidente do TSE, ministro
Luís Roberto Barroso, noticiou ter enviado um ofício ao diretor executivo do
Telegram, Pavel Durov, sugerindo um encontro para avaliar possíveis ações a
serem tomadas em conjunto. Contudo, a tentativa de contato, segundo a imprensa
brasileira, teria sido inócua, não tendo havido resposta dos representantes da
empresa até o momento em que este artigo é escrito.
Essa falta de interlocução entre Telegram e Justiça
Eleitoral ascendeu a discussão sobre uma eventual determinação judicial visando
o bloqueio do aplicativo para os usuários brasileiros.
Antes de adentrar na questão da constitucionalidade desse
eventual bloqueio, é importante averiguar a eficácia jurídica da comunicação
que se pretendeu estabelecer entre o tribunal brasileiro e a empresa.
Segundo declara o aplicativo em seu site, sua sede é baseada
nos Emirados Árabes Unidos, especificamente em Dubai. Por seu turno, segundo as
notícias veiculadas pelo TSE, o ofício teria sido encaminhado digitalmente a
Durov, cidadão francês (desde novembro de 2021, ocasião em que supostamente
renunciou à nacionalidade russa), por sua vez, domiciliado em São Cristóvão e
Nevis, um pequeno Estado independente localizado nas Antilhas britânicas.
Seria possível considerar que o ofício enviado pela
secretaria da presidência do TSE, sabe-se lá se por e-mail ou por outra
modalidade de comunicação permitida pelo próprio Telegram, poderia ser
considerado uma comunicação oficial segundo as normas do direito internacional?
Havendo notícias de que a sede do Telegram se situa em Dubai
e que a residência habitual de seu proprietário se localiza em São Cristóvão e
Nevis, qualquer eventual conclusão de que houve desobediência ou falta de
colaboração do preposto da empresa, sem o trâmite da cooperação jurídica
internacional, parece precipitado. Aliás, a própria competência internacional
das cortes brasileiras para demandar o Telegram, quando comparada a outras
jurisdições, parece exagerada: segundo o artigo 15 do Código Civil napoleônico,
vigente na França há mais de um século, a nacionalidade francesa recém
adquirida por Durov faz com que as cortes locais sejam automaticamente
competentes para receber quaisquer medidas judiciais em face do proprietário do
Telegram, assim como as cortes de Dubai (sede da empresa) ou de São Cristóvão e
Nevis (domicílio de seu presidente). Em síntese, não parece correto afirmar que
o ofício enviado a Durov possa ser considerado eficaz no Brasil, para efeitos
de se declarar sua desobediência perante as cortes nacionais ou mesmo que tenha
havido má vontade da empresa frente ao problema das fake news nas
eleições de 2022.
Analogamente, a possibilidade de bloqueio do Telegram no
Brasil, ainda que se considere uma eventual eficácia negativa do ofício enviado
fora dos padrões cooperacionais (e diplomáticos), não é menos polêmica. Embora
o bloqueio seja questionável à luz do princípio da razoabilidade e da
proporcionalidade, a suspensão das atividades do aplicativo é também polêmica
frente às disposições do Marco Civil da Internet, visto que as medidas
punitivas previstas pelos incisos III e IV do artigo 12 ainda não se encontram
regulamentadas. Como ainda não existe um decreto regulatório que defina o
procedimento a ser seguido para apuração e aplicação das penalidades previstas
pelo artigo 11, logo, as penalidades dos incisos III e IV do artigo 12 do Marco
Civil (suspensão temporária e proibição das atividades) parecem ser, por ora,
inaplicáveis.
Uma das ideias em debate é de que o Telegram não pode operar
no Brasil enquanto não possuir representação no território nacional. Porém,
vale aqui uma reflexão sobre o alcance do verbo operar: se a empresa não possui
quaisquer representantes no país e seu produto é utilizado via rede mundial de
computadores, quem teria “operado”, propriamente, para que a disseminação
de fake news ocorresse? Os usuários ou a plataforma? Em se tratando
de comunicação digital, “opera-se” a transmissão da fake news entre o
emissor e o receptor, independentemente da atuação ou da existência da mídia utilizada,
seja ela virtual ou analógica. Caso a fake news tivesse sido
propagada no Brasil entre brasileiros – por hipótese – na mensagem escrita num
cartão postal adquirido no Zimbabwe, teria a gráfica africana que imprimiu o
material “operado” no país? Evidentemente, embora haja uma justa expectativa de
que as grandes empresas de internet colaborem com as autoridades mundiais no
combate às fake news, o argumento de que não há “operação” no Brasil não
parece ser o mais convincente para se justificar o bloqueio do aplicativo a
milhões de brasileiros.
Além disso, a interrupção do aplicativo parece ser, a toda
evidência, desproporcional, ensejando a violação de preceitos fundamentais
previstos pela Constituição, como a liberdade de expressão e o acesso à comunicação.
O bloqueio punitivo do WhatsApp está sendo julgado pelo STF na ADPF 403 e ADI
5527 há alguns anos, sem ainda qualquer conclusão definitiva.
Do ponto de vista prático, o bloqueio do Telegram no Brasil
também seria um grande desafio. Primeiro, porque ele teria que partir de
provedores de backbone e de acesso à internet, que deveriam ser obrigados a
impedir o acesso dos usuários brasileiros ao aplicativo, alterando-se a tabela
de nomes de domínio DNS. O problema é que essa medida pode ser burlada, por
exemplo, pelo uso de tabelas DNS (disponíveis na internet) por parte de
usuários mais experientes.
Outra medida seria o bloqueio do endereço IP do Telegram.
Nesse caso, também existem recursos disponíveis para driblar a medida, como a
utilização de um VPN.
De todo modo, independentemente da efetividade questionável
de tais medidas, a reflexão que deve ser feita é se a suspensão ou o banimento
do Telegram é a melhor solução para se combater as fake news, não obstante
o fato de que pelo menos 11 países já declararam ter bloqueado o uso da
ferramenta em suas respectivas jurisdições (como a própria Rússia, de onde o
aplicativo se originou). Como dito, é muito provável que muitos usuários que se
encontram nessas localidades possam estar burlando esses bloqueios, não
obstante os esforços das respectivas autoridades locais.
O Brasil tem vivido um profundo e continuado desapontamento
com suas instituições. Há um inegável vácuo entre as aspirações populares e
o establishment político, em que a notória criminalização da
política, causada pelos seguidos escândalos que tomaram conta do cenário
nacional nos últimos anos, parecem justificar a sensação de falta de
legitimidade de muitas de nossas lideranças. Porém, informação equivocada
(ou fake) se combate com (boa) educação e fontes confiáveis. Jamais com
restrição ou censura.
A experiência tem mostrado que a concentração de esforços
visando identificar e punir os financiadores das fakes news, em conjunto
com uma ampla campanha de esclarecimentos à população, é a forma mais eficaz de
atuação. Embora não exista ainda uma “bala de prata” para resolver esse grave
problema que aflige toda a sociedade contemporânea, o simples e puro bloqueio
do Telegram não parece ser a melhor alternativa.
Por: Solano de Camargo (presidente da Comissão de Privacidade e Proteção de Dados da OAB SP); Caio Miachon Tenorio (membro da Comissão de Privacidade e Proteção de Dados).

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