Editorial

Nepotismo em Itapeva: a lei passou, mas os sobrenomes ainda resistem ao exílio

A história da política brasileira é marcada por leis que entram para os anais como marcos simbólicos de uma ruptura. Algumas nascem como resposta tardia a uma prática arcaica; outras surgem como avanço civilizatório, resultado direto da pressão popular por moralidade. A lei aprovada na noite de 9 de junho pela Câmara Municipal de Itapeva é uma mistura dos dois. Trata-se de uma proposta que não apenas proíbe o nepotismo de forma mais ampla, como também escancara a resistência visceral de quem ainda trata o serviço público como propriedade de família. Ao aprovar os Projetos de Lei nº 92/2025 e 94/2025, o Legislativo municipal cravou um divisor de águas no seu histórico de relação promíscua entre o poder e o sobrenome. Mas, como toda ruptura, essa não veio sem gritos, sem manobras, sem discursos emocionados nem bastidores movimentados por cargos, promessas e pactos de sobrevivência.

A prefeita Adriana Duch, ciente da iminência do projeto e do impacto direto sobre a estrutura de sua administração, decidiu antecipar-se ao desgaste. Dias antes da votação, publicou um vídeo em suas redes sociais no qual tentou blindar sua decisão de nomear a prima Valéria para o cargo de secretária da Saúde. Falou com o tom de quem suplica compreensão. Argumentou que Valéria tem mais de trinta anos de experiência na saúde pública, que sua escolha não foi motivada por laços de sangue, mas por competência. Reforçou que consultou parecer jurídico, que está respaldada pela Súmula Vinculante nº 13 do Supremo Tribunal Federal e que, portanto, não haveria qualquer irregularidade na nomeação. Disse ainda que Itapeva já teve prefeitos com parentes ocupando cargos estratégicos e que isso nunca foi problema. Mas, agora, segundo suas palavras, estariam usando o tema como forma de perseguição política. Foi um discurso longo, defensivo, quase confessional. Tentou explicar o inexplicável: por que, diante de tantos profissionais qualificados, escolheu justamente uma parente?

É justamente esse o problema que a nova legislação tenta enfrentar. O projeto aprovado amplia a vedacão da nomeação de parentes para cargos comissionados e de primeiro escalão, como secretarias, procuradoria, controladoria e assessorias. A novidade é a inclusão de parentes até o quarto grau e por afinidade, o que alcança primos, sobrinhos-netos, trinetos, tios-avós e demais figuras comuns nas ramificações de poder que se formam em administrações municipais. É uma resposta direta ao fisiologismo enraizado que, por anos, tratou a Prefeitura e a Câmara como extensões da sala de jantar.

Para que a lei chegasse à votação, foi necessário driblar tentativas de suavização. O vereador Margarido apresentou uma emenda para restringir a vedacão até o terceiro grau, alegando alinhamento com a súmula do STF. A proposta não passou nem da Comissão de Legislação, tamanha a sua fragilidade política e jurídica. Em contrapartida, a Emenda 01 ao PL 92/2025, assinada por diversos vereadores, foi aprovada e deu ainda mais robustez ao texto original. A redação final consolidou a proibição de nomeação de parentes para cargos de direção, chefia e assessoramento de autoridades, inclusive vereadores, prefeito, vice e titulares de secretarias. A exceção ficou por conta dos servidores efetivos, que podem ser nomeados para funções de confiança, ainda que sejam parentes. Uma brecha preocupante, que pode se transformar em canal alternativo de favorecimento caso não haja fiscalização efetiva.

O clima da sessão foi de tensão velada. De um lado, os vereadores que empunharam a bandeira da moralidade administrativa. De outro, os que se revezaram entre silêncio, discursos emotivos e contestações técnicas que, no fundo, escondiam um desconforto com a perda de espaço na engrenagem do poder. A vereadora Gleyce Dornelas (Novo) vociferou contra o projeto. Disse que era perseguição pessoal. Que sua prima, sua assessora, seria diretamente afetada. Que a prima da prefeita, secretária da Saúde, também seria atingida. Que não se tratava de moralidade, mas de uma tentativa de enfraquecer adversários. Em sua fala, Gleyce não apenas criticou a proposta, mas a confirmou em toda sua necessidade. Ao reconhecer que parentes ocupam cargos políticos não por acaso, mas por confiança pessoal, admitiu sem querer a existência da prática que se quer erradicar.

O placar da votação também expõe as linhas de divisão da política de Itapeva. Foram nove votos a favor: Thiago Leitão, Áurea Rosa, Val Santos, Marcelo Poli, Ronaldo Coquinho, Tarzan, Roberto Comeron, Júlio Ataíde e Vanderlei Pacheco. E cinco contra: Lucinha Woolck, Margarido, Júnior Guari, Gleyce Dornelas e Robson Leite. O mapa da votação revela mais do que preferências ideológicas. Indica zonas de influência, territórios de indicações e a persistência de laços que transformam funções públicas em feudos pessoais.

Curiosamente, apesar do alarde, a nova legislação é inspirada em entendimento do próprio Supremo Tribunal Federal, que já validou leis municipais semelhantes, como a aprovada em Francisco de Sá (MG). Ali, o STF deixou claro que o município tem autonomia para impor regras mais rigorosas desde que o objetivo seja resguardar os princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade. Portanto, o argumento de que a nova lei é inconstitucional não resiste à análise jurídica. Trata-se de uma escolha política, não de um desvio legal.

Com a aprovação dos projetos, o clima agora é de expectativa. A prefeita Adriana Duch precisa decidir se vai sancionar integralmente o texto ou se tentará vetar dispositivos que atingem diretamente sua administração. Caso opte pelo veto, enviará à população uma mensagem clara: a de que, entre o interesse coletivo e a conveniência pessoal, prefere a segunda opção. Se sancionar, talvez consiga recuperar parte do capital político perdido ao nomear uma parente para um dos cargos mais sensíveis da gestão. De qualquer forma, a decisão será observada com lupa pela sociedade e pelos vereadores que agora se declaram guardiões da moralidade.

O que aconteceu em Itapeva nesta segunda-feira não é apenas uma mudança legal. É um sintoma de maturidade institucional. A aprovação da lei não encerra o problema do nepotismo, mas dá à cidade um instrumento para combatê-lo com mais contundência. E, sobretudo, expõe os que insistem em perpetuar esse modelo de governança medieval, em que o currículo é menos importante do que o grau de parentesco. Não é moralismo. É decência.

O fisiologismo ainda não morreu em Itapeva. Mas, pela primeira vez em muito tempo, recebeu um golpe certeiro. E sangra. Sangra porque perde espaço, porque vê o cerco jurídico se fechar e porque percebe que a sociedade civil, ainda que silenciosa, começa a entender o preço que paga por cada nomeação indevida. A lei aprovada é dura, mas necessária. Como ensina a boa política: quem quer servir ao público precisa primeiro romper os laços que confundem o público com o privado.

Agora é com a prefeita. E com a história.

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