A ouvidoria que não ouve o povo
Câmara de Itapeva insiste em transformar vaidade política
em prioridade enquanto a cidade carece de soluções concretas
Há um traço recorrente na política brasileira que atravessa
partidos, ideologias e gerações: a capacidade de inventar estruturas
supostamente modernas, vendidas como mecanismos de transparência e
participação, mas que na prática funcionam como vitrines de vaidade ou cabides
de emprego. A discussão em torno da criação de uma ouvidoria parlamentar na
Câmara Municipal de Itapeva é apenas mais um capítulo dessa encenação.
O debate travado na sessão do dia 18 revelou o óbvio: em vez
de representar um avanço democrático, a ouvidoria ameaça transformar-se em
palanque institucional, sem oferecer qualquer benefício real à população. A
crítica certeira partiu do vereador Dr. Marcelo Poli, que, ao contrário de
muitos colegas embalados por discursos moralistas, ousou lembrar que Itapeva
não precisa de mais burocracia: precisa de resultados.
O projeto apresentado com pompa foi vendido como uma forma
de aproximar o cidadão do Legislativo, criando um canal para denúncias,
reclamações e sugestões. A retórica soa bonita, quase irresistível em tempos de
desconfiança generalizada. Quem, em sã consciência, seria contra a
transparência? O problema é que a ideia desmorona na primeira análise concreta.
Itapeva já conta com 15 gabinetes parlamentares, cada qual
com assessores pagos pelo contribuinte, preparados — ao menos em tese — para
atender a população, receber demandas e encaminhá-las. Se esses gabinetes não
cumprem o papel de porta de entrada do cidadão, a falha não será corrigida por
mais um órgão, mas pela mudança de postura dos próprios vereadores. Criar uma
ouvidoria para fazer o trabalho que deveria ser rotina nos gabinetes é, no
mínimo, uma confissão pública de incompetência.
Dr. Marcelo Poli foi direto: “A população não aguenta mais
ver nós políticos aumentar os nossos gastos”. E tem razão. O país enfrenta
juros altos, inflação persistente e um cenário econômico que asfixia famílias e
empresas. Enquanto isso, no Congresso Nacional, vereadores, deputados e
senadores seguem multiplicando estruturas, cargos e penduricalhos, sempre sob o
argumento de que “não há custos adicionais”.
Essa frase virou bordão de justificativa. Mas é também uma
mentira piedosa. Nenhum projeto é de custo zero. Qualquer nova estrutura exige
espaço físico, suporte administrativo, logística, manutenção e,
inevitavelmente, gastos que poderiam ser destinados a prioridades muito mais
urgentes. A desculpa de que “já existem servidores e salários pagos” não muda o
fato: a máquina pública não precisa de mais tarefas artificiais, precisa de
eficiência.
Talvez o ponto mais grave apontado por Dr. Marcelo Poli seja
a previsão de que o ouvidor seja um vereador escolhido para um mandato de dois
anos. O modelo transforma a ouvidoria em palco de disputa política, com todos
os ingredientes para virar campanha eleitoral antecipada. Afinal, qual será o
estímulo de um parlamentar indicado para a função? Atender com isenção a
população ou usar o cargo para autopromoção, colecionando holofotes e
construindo narrativas convenientes?
A história recente da política brasileira está repleta de
exemplos de órgãos criados sob o manto da transparência que, na prática,
tornaram-se meros instrumentos de barganha e propaganda. A ouvidoria corre o
risco de seguir o mesmo destino: mais uma peça no tabuleiro da vaidade, onde a
defesa do povo serve apenas como enfeite retórico.
Enquanto parte da Câmara desperdiçava energia na discussão
da ouvidoria, Dr. Marcelo Poli apresentava um projeto concreto: a pavimentação
da ligação entre os bairros São Miguel e Grajaú, com verba de R$ 1 milhão já
garantida por emenda parlamentar. Ali está a diferença que separa a política
útil da política decorativa.
De um lado, vereadores empenhados em criar mecanismos que
apenas reproduzem funções já existentes. Do outro, um parlamentar que se
concentrou em buscar recursos para resolver um problema real, sentido
diariamente por motoristas e pedestres. Entre a criação de uma ouvidoria e a
construção de uma rua asfaltada, a população não tem dúvidas sobre qual
iniciativa realmente melhora sua vida.
É revelador constatar que em nenhuma esquina de Itapeva, em
nenhuma fila de hospital, em nenhum bairro esquecido pela infraestrutura
básica, a população clama por uma ouvidoria. O que se ouve são pedidos por
saúde de qualidade, segurança efetiva, transporte escolar regular, ruas
transitáveis, empregos e oportunidades.
Inventar um órgão para recolher reclamações que já poderiam
ser encaminhadas diretamente aos gabinetes é ignorar as demandas reais em nome
de uma encenação burocrática. É transformar a dor do povo em palco para
discursos.
O debate da sessão deixou claro que há vereadores mais
preocupados em defender prerrogativas internas e espaços de poder do que em
enfrentar os gargalos do município. O episódio é didático: quando a política
prefere debater o acessório e negligenciar o essencial, quem perde é a
população.
Ao insistir que a ouvidoria é de “extrema importância”,
alguns vereadores apenas confirmam o divórcio entre a Câmara e os cidadãos. O
termo “transparência”, repetido à exaustão, soa vazio quando não encontra
correspondência em ações concretas. Transparência não se decreta: se pratica.
Dr. Marcelo Poli lembrou, com ironia, que qualquer vereador
pode segurar projetos, pedir prazos e exercer suas prerrogativas regimentais.
Essa é a essência do Legislativo. A tentativa de deslegitimar quem questiona a
pressa em aprovar a ouvidoria revela mais sobre o projeto do que sobre seus
críticos. Se fosse uma proposta realmente sólida, não precisaria de manobras
para ser imposta.
A pressa é inimiga da democracia. O atropelo serve apenas
para esconder fragilidades e garantir interesses imediatos. A democracia
legislativa é feita de discussão, divergência e fiscalização. A tentativa de
impor unanimidade soa autoritária, ainda que travestida de boas intenções.
A verdadeira ouvidoria que Itapeva precisa não se instala
por decreto. Ela se manifesta todos os dias nas ruas esburacadas, nas filas da
Santa Casa, no comércio fechado do centro, nos bairros sem saneamento, nas
escolas com estrutura precária. Cada cidadão que se indigna diante da omissão
do poder público é, em si, uma voz que exige ser ouvida.
Ignorar essas vozes em nome de um projeto de autopromoção
parlamentar é mais do que erro político: é traição ao mandato. O Legislativo
deveria ser o espaço natural de escuta da população. Criar uma ouvidoria é
reconhecer que os vereadores abandonaram essa função.
O editorial de hoje não é contra mecanismos de
transparência. Qualquer instrumento que fortaleça o controle social é
bem-vindo, desde que seja sério, independente e eficaz. O problema está em
criar estruturas de fachada, que consomem energia, desviam o foco e alimentam a
demagogia.
Itapeva precisa de obras, investimentos e gestão eficiente.
Precisa de vereadores que busquem emendas, que fiscalizem contratos, que
denunciem irregularidades, que lutem por hospitais equipados e escolas de
qualidade. Não precisa de uma ouvidoria que, na melhor das hipóteses, será
redundante, e na pior, se transformará em trampolim eleitoral.
Cabe à imprensa registrar e denunciar a farsa embalada em
discursos melosos. A função do jornalismo crítico é separar o que é prioridade
do que é perfumaria. É mostrar que, enquanto vereadores disputam espaço numa
ouvidoria de impacto duvidoso, a população segue desassistida em áreas vitais.
É também função da imprensa lembrar que cada centavo do
orçamento público tem dono: o contribuinte. E que cada projeto aprovado ou
rejeitado deve ser medido não pelo benefício que traz ao vereador, mas pelo
efeito que causa na vida real das pessoas.
A fala do Dr. Marcelo Poli, ainda que incômoda a alguns
colegas, foi um sopro de lucidez em meio ao festival de autopromoção. O
vereador lembrou o essencial: a Câmara não existe para se servir, mas para
servir. Itapeva não precisa de mais discursos sobre transparência; precisa de
ações transparentes. Não precisa de ouvidoria; precisa de vereadores que saibam
ouvir.
Enquanto a população espera por resultados, parte do
Legislativo prefere brincar de criar estruturas inúteis. Essa escolha revela
muito sobre as prioridades de quem ocupa a cadeira parlamentar. E confirma por
que, cada vez mais, o eleitor olha para o plenário com desconfiança — e para os
políticos com desprezo.
Editor-Chefe: Daniel Melo MTB 88257/SP
Jornal No Alvo

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