Editorial

Burocracia emperra IML e prolonga dor dos itapevenses

Enquanto a gestão discute “irregularidade”, a necropsia segue sem escala e famílias continuam na estrada.

Quem acompanha a vida pública sabe: para entender a política, é preciso se afastar meio passo. Visto de cima, o tabuleiro revela peças, alianças e omissões que, no chão, passam despercebidas. Em Itapeva, não é diferente. A cidade atravessa um impasse que não admite tergiversação: a reativação plena do Instituto Médico Legal. Enquanto a população — que paga imposto, perde tempo e sofre — aguarda uma solução, o assunto foi arrastado para o ringue da conveniência. O resultado é um teatro de justificativas, vídeos e declarações que, ao fim, nada entregam.

O IML é serviço de Estado, não de ocasião. Autópsias, exames de corpo de delito, perícias que sustentam investigações criminais e processos judiciais — nada disso pode depender da sorte. Quando a estrutura não funciona, famílias enlutadas são forçadas a se deslocar, o trabalho policial perde timing e o Ministério Público fica sem a prova robusta na hora certa. Isso não é opinião; é rotina conhecida em Itapeva e região, com a peregrinação até Sorocaba sempre que a mesa de necropsia de Itapeva não está de pé. O próprio histórico da pauta registra a estagnação por falta de pessoal e estrutura desde meados da última década, com o tema indo e voltando ao plenário e à imprensa sem a solução que interessa a quem sofre na prática o problema.

Nos últimos meses, uma saída operacional, emergencial e perfeitamente razoável foi colocada à mesa: a Prefeitura ceder três servidores, via convênio, para atuar como auxiliares de necropsia — além de um perfil administrativo — de modo a permitir a retomada integral do serviço enquanto o Estado repõe, por concurso, seu quadro próprio. A proposta veio chancelada por quem entende do riscado: o diretor do IML de Sorocaba, médico-legista Dr. Túlio de Vasconcellos Barbosa, responsável regional pela cadeia pericial.

Segundo relatos consistentes, a Prefeitura teria inicialmente concordado com a cessão de três servidores de apoio à necropsia — mudança de escala, treinamento e aditivo no convênio seriam conduzidos com o aval técnico da Polícia Científica — e, depois, recuado para apenas um. Pior: o texto do convênio teria sido amarrado para permitir exclusivamente função administrativa, sem a atividade-fim de auxiliar de necropsia, o que inviabiliza a operacionalidade da mesa. Quem conhece a rotina de um IML sabe: não existe plantão de necropsia com “um servidor sozinho” respondendo por recepção, cadastro, preparo do corpo e sala de autópsia. Isso não é escala; é risco, é engodo. O resultado todos enxergamos: retrocesso. A cidade volta à estaca zero, e a população continua à deriva. Relatos de famílias que precisaram do IML e sequência de ofícios e reuniões dão lastro a esse roteiro.

Para justificar o recuo, a versão oficial difundida em redes sociais sustentou que a cessão de servidores municipais para a função de auxiliar de necropsia seria “irregular” e que, portanto, não haveria como avançar sem concurso do Estado. Essa tese não para em pé. Primeiro, porque o próprio diretor regional da Polícia Científica — autoridade técnica — registrou, em diferentes ocasiões, a viabilidade jurídica e operacional do convênio com cessão temporária, com treinamento prévio, para suprir a urgência da cidade e região. Segundo, porque há precedentes de cessão de servidores municipais à Secretaria da Segurança Pública para atividades de apoio policial (em delegacias, por exemplo) e até termos semelhantes em outros Estados para a função de necropsia. Em outras palavras: o instituto do convênio existe, é legal e vem sendo usado. O que falta, aqui, é vontade de executar.

Na seara pericial, não há espaço para improviso; há, sim, soluções de transição. Treinamento padronizado, escala mínima e cadeia de custódia são pilares. Quando um médico-legista responsável pela região — caso do Dr. Túlio — recomenda a cessão temporária de auxiliares, com formação pela própria academia de polícia, não se trata de “drible” jurídico, mas de resposta técnica à urgência. É o caminho do meio entre a paralisia e a irresponsabilidade. São Paulo, por meio da Polícia Científica, sabe montar essa engenharia; Sorocaba, que responde por dezenas de municípios, também. Falta Itapeva aceitar que, sem a tríade de auxiliares em escala, não há necropsia, e sem necropsia não há IML pleno.

A cronologia pública mostra que 2019 foi um ponto de inflexão negativo: aposentadorias e a falta de reposição levaram o serviço ao colapso. No biênio recente, a pressão da sociedade organizada — com o CONSEG à frente — recolocou o tema na pauta: tribuna da Câmara, mobilização de lideranças, reunião no Paço e promessas de 60 dias para funcionamento com legistas e técnicos. Houve até quem celebrasse uma “reunião histórica”. Seis, nove meses depois, troca-se a tesoura pela fita: no lugar do corte de inauguração, multiplicam-se vídeos explicativos. Explica-se o quê? O imobilismo. Quem sofre é a população que segue levando corpo de parente para Sorocaba; quem capitaliza, quando tenta, é a retórica.

O CONSEG, desde que reassumiu a pauta da reativação, tem se orientado por ofícios da Segurança Pública e pelas manifestações do médico-legista chefe regional. Não foi uma aventura: houve alinhamento com “alto escalão” — e, nesse enquadramento, a orientação se manteve estável: é possível, sim, o município ceder auxiliares de necropsia por convênio, com treinamento e atuação sob a cadeia de comando da Polícia Científica, até que o concurso estadual resolva definitivamente a carência de pessoal. Qual é a dúvida? Onde, exatamente, residiria a tal “irregularidade”? A resposta, até aqui, não veio. Veio só a recusa.

Em política, a palavra “irregularidade” virou biombo. Serve para tudo e para nada. Quando se quer fazer, o gestor pega o telefone, alinha com a área técnica, assina o aditivo e entrega o resultado. Quando não se quer, grava-se um vídeo e empilha-se adjetivos. Na prática administrativa, há duas obrigações: (1) cumprir a lei e (2) entregar o serviço. Cessão temporária por convênio, em rede de segurança pública, é instituto trivial na máquina brasileira — dos cartórios policiais aos plantões administrativos. A Prefeitura não precisa reinventar a roda; basta copiar o manual que outros municípios já usaram para apoiar estruturas estaduais — inclusive na própria SSP de São Paulo.

A saída é conhecida e tem três passos:
(i) aditar o convênio para explicitar a cessão de três servidores como auxiliares de necropsia, com escala definida e supervisão técnica;
(ii) manter um servidor administrativo vinculado ao fluxo de cadastro, recepção e documentação;
(iii) formalizar o programa de treinamento teórico e prático — o teórico já foi iniciado, segundo relatos, com o próprio diretor regional — e concluir a prática em Sorocaba, antes da lotação efetiva em Itapeva. Isso se faz em 30 a 45 dias em qualquer repartição que queira trabalhar. O resto é desculpa.

Se a Prefeitura alega que “não pode”, que prove. Transparência não é publicar um vídeo; é publicar o texto do convênio, as minutas de aditivo, os ofícios da SSP e os pareceres que sustentariam a negativa. No Portal da Transparência da própria SSP, existe seção sobre convênios e repasses. Se há algum impedimento novo, ele deve estar documentado. Se não estiver, trata-se, então, de divergência política travestida de barreira jurídica. A lei não bloqueia boa-fé administrativa; apenas enquadra.

A entrevista aqui, o corte acolá, a live acolheu “questão de honra”. O cidadão já aprendeu a desconfiar de superlativos. “Questão de honra” é entregar o IML funcionando, não dizer que vai entregar. “Compromisso com a região” é escalar três auxiliares e abrir a porta da sala de necropsia, não fazer reunião em capital para ouvir de burocrata alheio ao caso que “só concurso resolve”. Concurso sempre foi a solução final. O convênio é a solução agora — exatamente para que o serviço não permaneça paralisado até quando houver concurso. É por isso que se chama convênio de cooperação.

Se a tese oficial fosse verdadeira — de que não se pode ceder servidor municipal para funções acessórias na SSP — nunca teríamos visto, ao longo dos anos, a enxurrada de leis municipais autorizando convênios com a Segurança Pública para apoio em delegacias, guardas, centrais, conselhos e afins. Não é teoria: há leis aprovadas em cidades paulistas justamente com esse objetivo. Em outros Estados, termos de cooperação específicos já cederam auxiliares de necropsia ao órgão pericial. O Brasil real funciona assim: união de esforços, cada ente entra com o que pode, e a população recebe o serviço. Aqui, por enquanto, o que se vê é a recusa de um ente em fazer a sua parte.

Que ninguém se engane: o IML é responsabilidade do Estado. Mas o município tem o dever político de não atrapalhar — e, se puder, ajudar. Foi justamente isso que se propôs: uma ajuda temporária, com servidores cedidos, treinados e submetidos à hierarquia pericial. Se o Estado aquiesceu — e, segundo consta, aquiesceu —, o município não pode se dar ao luxo de sabotar a solução por capricho redacional no convênio. Não cabe inviabilizar o essencial “por falta de vírgula”. A vírgula a mais é a dor de famílias que seguem na estrada.

A Prefeitura transformou um problema técnico em peça de marketing. O roteiro é conhecido: primeiro, anuncia-se que “avançou”; depois, reclama-se da herança; em seguida, culpa-se a burocracia; por fim, prata da casa em vídeo com “bastidores”. O que falta? A mesa funcionando. Em janeiro, falou-se em acordo histórico, com metas de 60 dias. O relógio andou, e o serviço, não. Em outubro, já se fala em “novas conversas” — mas a necropsia segue sem escala. Não é que tenha faltado palco; faltou entrega.

Serviço público se mede por resultado. Ou o corpo é recebido em Itapeva, ou continua sendo transportado para Sorocaba. Ou o laudo sai aqui, ou o inquérito atrasa. Não há meio-termo. É por isso que a proposta de três auxiliares é um divisor de águas. Sem a tríade, não existe escala higiênica, nem cadeia de custódia segura. E sem isso, falar em “IML funcionando” será sempre figura de retórica.

A Câmara não pode assistir de camarote. Na hora de votar moções e requerimentos, vereadores sabem acender o microfone; agora, precisam acender o farol sobre o convênio. O plenário deve exigir, por documento, as minutas, as idas e vindas, os pareceres e, sobretudo, as razões técnicas da negativa. O Legislativo já pautou o tema e cobrou auxiliares. É hora de avançar da “cobrança” para a verificação, com prazo. Se a tese da “irregularidade” for real, mostre-se o número do parecer, o fundamento e a assinatura. Se não, adite-se o convênio e escale-se a equipe. Simples.

Liderança se prova no atrito. Uma prefeita com comando político, ao ouvir a recomendação técnica da Polícia Científica, faria o óbvio: ajusta o texto, adita o convênio, cede os servidores e abre o IML. Ao mesmo tempo, cobra do Estado o concurso e a reposição definitiva da força de trabalho. Assim se governa: com caneta e agenda, não com ring light. O resto é campeonatinho de likes.

Cada semana sem necropsia tem preço: combustível de viatura, hora de servidor, deslocamento de família, prazo processual, dignidade do luto. Não há cálculo contábil que compense a dor de uma mãe parada num corredor desconhecido, longe da sua cidade, esperando liberação de corpo. A Prefeitura não pode dizer que “não sabia”; foi informada, mais de uma vez, por quem tem obrigação de saber. Seguir negando o óbvio é transformar a exceção em política pública.

O tema já rendeu discurso, selfie e palanque. Teve “reunião histórica”, “questão de honra”, “busca junto ao secretariado”. De nada adianta a romaria a São Paulo se a visita termina na mesa do assessor que nem acompanha o caso. O caminho é direto: Prefeitura fala com quem opera a Polícia Científica na região — o diretor técnico —, amarra o texto com a SSP e publica o aditivo. A cidade não precisa de peregrinação; precisa de solução.

  • Problema real: carência de auxiliares de necropsia e de um administrativo em Itapeva.
  • Saída técnica: convênio municipal com três auxiliares cedidos (e um administrativo), treinados e subordinados à Polícia Científica, até a chegada de concursados.
  • O que travou: recuo político no número de servidores e convênio mal redigido (limitado a “administrativo”), que inviabiliza a sala de necropsia.
  • O que se exige: publicar o convênio, aditar o texto, treinar a equipe e abrir a escala.
  • Quem ganha: famílias, polícia, Ministério Público, Judiciário — e a credibilidade do governo de Itapeva.

Não é preciso “inventar” uma permissão. A figura da cessão por convênio para apoiar a segurança pública é velha conhecida das prefeituras paulistas. Há leis municipais autorizativas e termos de cooperação pelo Brasil, inclusive para necropsia em outros Estados. Se é preciso uma lei local específica para Itapeva, que se mande à Câmara hoje. Em 48 horas, entre mensagem do Executivo, tramitação célere e votação em regime de urgência, a autorização sai. O entrave não é jurídico; é político.

A prefeita Adriana Duch e sua equipe têm duas opções: seguir gravando vídeos didáticos sobre por que “não dá”, ou assinar o aditivo que faz dar. A primeira opção multiplica curtidas; a segunda multiplica dignidade. O Sudoeste Paulista já foi longe demais nessa penitência. Itapeva tem a infraestrutura, tem a orientação técnica, tem o contexto jurídico — e tem urgência. Falta o gesto administrativo.

O cidadão pode — e deve — cobrar. Como? Pedindo o texto do convênio e do aditivo; exigindo a escala dos três auxiliares; cobrando a ordem de serviço com data e responsável. Promessa não libera corpo; papel assinado, sim. A política, quando pressentida à distância, revela o essencial: quem trabalha e entrega, e quem trabalha para explicar por que não entregou.

Itapeva precisa de menos coreografia e mais serviço. O assunto foi politizado à exaustão; está na hora de despolitizar a execução. O município cede, o Estado comanda, a Polícia Científica treina, a cidade agradece. Simples? Não. Possível? Inteiramente. O resto é fumaça. E fumaça, salvo melhor juízo, não faz autópsia.

Daniel Melo — MTB 88257/SP — Editor-chefe, Jornal No Alvo

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